O PROTAGONISMO ANÃO NO ACOLHIMENTO A REFUGIADOS: UM FINAL FELIZ AINDA DISTANTE

26/10/2018 16:24

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Por Diego Merigueti – Mestre em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo e pesquisador de Direito Internacional dos refugiados e circulação global.

Era uma vez uma história de uma jovem perseguida e ameaçada de morte por uma governante autoritária, que assumiu o poder após a morte de sua antecessora. Temendo por sua vida, não restou outra alternativa para a protagonista senão abandonar sua casa, sua família e partir em busca de refúgio e proteção fora de sua residência habitual.

Nessa releitura do clássico conto alemão de origem controversa, publicado pelos Irmãos Grimm nas primeiras décadas do século XIX e popularizado mundialmente por Walt Disney um século mais tarde (no primeiro longa-metragem de animação que produziu), a personagem se refugia na casa de estranhos, que a acolhem até que os tempos de paz sejam restaurados. No entanto, o que aproxima e o que difere a narrativa por trás de “Branca de Neve e os Sete Anões” do século XIX do intenso e cada vez mais crescente fluxo de deslocamento humano forçado que afeta mais de 65 milhões de pessoas em pleno século XXI?

Com a consciência de que o alarmante cenário contemporâneo é uma realidade longe de ser fictícia, a analogia permite identificar o temor de perseguição como ponto em comum. Para este grupo, que não pode mais contar com a proteção de seu Estado de origem, a fuga representa a única saída, assim como foi para a personagem do conto. Todavia, a maior similitude entre a ficção e a realidade reside em outro aspecto: o “protagonismo anão” no acolhimento àqueles que buscam refúgio.

Como se sabe, no conto alemão, foram sete anões que, após uma certa resistência inicial, acolheram a “estrangeira” em fuga, abriram as portas de sua casa, ofereceram-lhe abrigo, alimentação e proteção. Pode-se afirmar, inclusive, o êxito da integração (e não mera assimilação) nesta acolhida, uma vez que Branca de Neve, sem abandonar seus traços culturais e suas características, também se adaptava à rotina de trabalho dos seus acolhedores e colaborava no sustento da casa.

Indo além, é importante notar que os sete anões não eram ricos. Narra o conto que trabalhavam diariamente na mina para se sustentarem. Sua casa, modesta, pequena e adaptada a sua realidade e estatura, não comportava (teoricamente) uma nova habitante, ainda mais com características tão distintas. Mesmo assim, estes fatores não foram impedimento para o acolhimento da personagem que fugia de perseguição.

Retomando a alcunha certa vez atribuída ao Brasil pelo porta-voz do ministério das relações exteriores de Israel, também são os anões diplomáticos do mundo que, na trágica realidade contemporânea, têm desempenhado, há décadas, um papel protagonista no acolhimento da população refugiada.

Os dados apurados, até o final de 2015, pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados revelam que a população de refugiados (cujo status já foi reconhecido) e de solicitantes de refúgio ultrapassa o total de 19,3 milhões de pessoas (estas cifras excluem os deslocados internos, apátridas e outros casos específicos e, ainda, os refugiados palestinos, sob a proteção da UNRWA).

Tomando por base este número global, o relatório também identificou a Turquia, o Paquistão, a África do Sul, o Líbano, o Irã e a Etiópia, respectivamente, como os seis países que mais acolhem este contingente populacional em todo o mundo, abrigando, conjuntamente, mais de 8,3 milhões de refugiados e solicitantes de asilo, o que representa 43,11% do total dessa população. Noutro viés, considerando o ranking do Produto Interno Bruto divulgado pelo Banco Mundial em 2015, estes mesmos seis países representam apenas 2,49% do PIB mundial.

Em contrapartida, os seis países mais ricos do mundo Estados Unidos, China, Japão, Alemanha, Reino Unido e França (tomando por base o mesmo ranking do PIB do Banco Mundial), os quais agregam 56,59% do PIB mundial, recebem, juntos, pouco mais de 2,1 milhões de refugiados e solicitantes de asilo, representando tão somente 10,95% desta população no mundo.

Importante destacar que a disparidade só não é mais flagrante graças à recente atitude da Alemanha, em 2015, em se postar como ator de destaque na solução compartilhada da crise, dispondo-se a implementar uma política de receber em seu território expressivo contingente daqueles que fogem dos conflitos e perseguições. Por outro lado, tendo por parâmetro apenas os refugiados cujo status já foi reconhecido (isto é, excluindo-se os casos cuja análise da solicitação ainda encontra-se pendente), a discrepância acentua-se ainda mais.

Desta vez, a lista dos seis países que mais acolhem refugiados passa a ser representada, respectivamente, por Turquia, Paquistão, Líbano, Irã, Etiópia e Jordânia, os quais, apesar de representarem conjuntamente apenas 2,12% do PIB mundial, acolhem, juntos, mais de 7,5 milhões refugiados em seu território. Por sua vez, os mesmos seis países mais ricos do mundo (representantes de 56,59% do PIB mundial) acolhem apenas aproximadamente 7,99% dos refugiados cujo status já se reconheceu.

Considerando o baixo rendimento econômico das nações que mais acolhem (sobretudo comparando-se com as cifras das maiores potências), o expressivo número de refugiados tem um impacto substancial não apenas sob o viés demográfico, mas sobretudo socioeconômico e político destes países.

Nesse sentido, é preciso destacar que afora os refugiados já reconhecidos, o Paquistão possui mais de um milhão de deslocados internos. O Líbano, a seu turno, possui o maior número de refugiados em cotejo com sua população até 2016: são 183 refugiados por 1.000 habitantes, o que significa dizer que, aproximadamente, a cada cinco indivíduos neste país, um é refugiado. Já no Irã, também afora os cerca de 980 mil refugiados, estima-se que haja de 1,5 a 2 milhões de afegãos não documentados.

O que se extrai dessa análise é que, a despeito de propagarem de modo contumaz a primazia dos direitos humanos, as potências econômicas do mundo têm falhado no dever de tornar efetivos os compromissos assumidos internacionalmente em prol da defesa e promoção dos direitos dos refugiados e na construção de políticas públicas que garantam aos mesmos viver dignamente.

Com efeito, falta aos “gigantes” do globo a adoção de uma postura ativa em resposta ao crescente fenômeno dos deslocamentos forçados. Mais do que um dever de solidariedade, o enfrentamento desta crise humanitária contemporânea exige que as potências econômicas assumam seus postos em compartilhar, com toda comunidade internacional, a responsabilidade em acolher aqueles que estão em situação de perseguição e vulnerabilidade.

A omissão dos “gigantes” faz com que recaia sobre os anões diplomáticos (e econômicos) a árdua tarefa de acolhê-los em seu território e, em alguns casos, também garantir à população refugiada acesso à assistência médico-hospitalar, ao mercado de trabalho e à educação, sob o risco de, assim agindo, acentuar suas próprias mazelas internas.

Mas as semelhanças entre o conto alemão e a realidade contemporânea se encerram neste protagonismo anão. Na maioria dos casos, as histórias de vida daqueles que fogem para sobreviver em nada se assemelham a um conto de fadas e são distantes os sinais concretos de um final em que todos vivem (e convivem) felizes para sempre ou em que a rápida extinção dos motivos de perseguição permitem o pronto restabelecimento da paz.

Ao contrário, a dura realidade revela que os campos de refugiados, inicialmente planejados para serem uma resposta imediata e temporária ao fluxo de deslocamento forçado acaba se tornando uma duradoura espera em condições de vida precárias. A situação não é tão diferente para aqueles refugiados que vivem nas cidades, enfrentando diariamente situações de exclusão e preconceitos.

Então, por que lançar mão de um conto de fadas da literatura infantil para fazer uma analogia com um tema tão sensível? Antes de mais nada, é preciso chamar a atenção para o fato de que mais da metade da população refugiada no mundo é constituída por crianças e adolescentes abaixo de 18 anos. Precisamente, mais de 98 mil crianças desacompanhadas ou separadas de suas famílias pediram asilo em 2015.

Diante da alavancada da onda de ódio e violência no mundo, seja pela continuidade de antigos conflitos ou pela emergência de novas guerras, oxalá existisse, assim como no conto, um espelho mágico que respondesse à indagação de quando tudo isso terá fim para que, então, vivamos tempos de paz, harmonia e tolerância no mundo.

Com a certeza de que esta crise não se resolverá num passe de mágicas, resta extrair deste inocente conto lições como hospitalidade e solidariedade e torcer para que estes valores inspirem as nações do mundo real a conduzir o adequado enfrentamento da questão por este caminho. Desta forma, a exemplo dos sete anões, que tenhamos no mundo mais portas abertas e menos fronteiras fechadas!