O FEMINICÍDIO NA AMÉRICA LATINA: UM ESTUDO DE CASO DA ARGENTINA

23/11/2018 16:21

Por Ana Flávia da Cruz Montemor Cardoso, Graduanda de Relações Internacionais na Universidade Federal de Uberlândia (UFU).

No ano de 2016, um brutal assassinato chocou a Argentina e os países da América do Sul, sendo capa de diversos jornais no mundo inteiro. Uma jovem de 16 anos foi drogada, estuprada e empalada na cidade de Mar del Plata, no leste do país. A notícia do acontecido provocou uma série de protestos, que ficaram conhecidos como “Ni una menos” e se espalharam por todo o país exigindo transformação concretas, sendo a primeira vitória a criação de uma plataforma oficial do governo de dados de homicídios contra a mulher e um monitoramento social dos casos.

As questões de desigualdade entre os gêneros provêm de uma objetificação da mulher na construção social. No Brasil, a definição de feminicídio encontra-se no livro “Diretrizes Nacionais do Feminicídio”. Segundo a descrição: “Femicídio” ou “feminicídio” são expressões utilizadas para denominar as mortes violentas de mulheres em razão de gênero, ou seja, que tenham sido motivadas por sua “condição” de mulher”. O tema por trás da violência contra a mulher é histórico, e vem ganhando força desde a década de 1950.

A região da América Latina apresenta hoje um dos maiores índices regionais do mundo de crimes contra a mulher, sendo Honduras o país com maior número de casos, 531 no ano de 2015. A Argentina não apresenta o maior índice de homicídios de mulheres da sua região, contudo, chama a atenção por ter um crescente número de feminicídios e uma opinião pública forte o suficiente para promover cobranças e resultados junto à legislação nacional. O impacto dos recentes acontecimentos pôde ser observado na sociedade que se encontra imersa nesse problema social e no aparato legislativo, sendo o único país da região que tem uma lei de homicídio agravado por questão de gênero.

Este texto, tem como objetivo analisar os dados e indicativos do feminicídio na América Latina e, em especial, na Argentina e debatê-los. Está subdividido em três partes. A primeira trata da análise da teoria de Simone de Beauvoir de maneira mais superficial, a partir da teoria de Simone de Beauvoir no livro “ O Segundo Sexo” (1949), onde a autora busca fazer uma análise do papel social desempenhado pela mulher e questiona a construção deste “lugar” onde nos encontramos. Simone promove uma crítica ao posicionamento da mulher perante a estrutura patriarcal da sociedade, onde, segundo a autora, não havia uma luta de fato em favor da ruptura desse sistema até a década de 1940.

A segunda, sobre o feminicídio na América Latina, onde abordaremos os dados e as legislações ao longo dos anos na região e principalmente dos países que se destacam, como Honduras, Brasil, Argentina. E a terceira, especialmente sobre o caso argentino no ano de 2016 e nos anos anteriores, procurando entender melhor como as leis foram ganhando espaço, bem como os debates e as ONGs ganhando força junto à sociedade.

Análise da teoria de Simone de Beauvoir

A violência de gênero é em muitas partes explicada pela desigualdade entre as funções sociais do homem e da mulher. Definir o que os diferencia e porque seus papéis sociais são distintos foram durante toda história da sociedade questionamentos feitos por diversas mulheres pensadoras do feminismo e principalmente da igualdade de gêneros. O livro de Simone de Beauvoir, “O Segundo Sexo: fatos e mitos”, publicado em 1949, provocou grande choque na sociedade da época por abordar pioneiramente tal questionamento sobre a posição da mulher na sociedade, além de confrontar as próprias mulheres sobre o que estava de fato sendo feito para que houvesse uma ruptura com esse sistema (BEAUVOIR, 1949).

Simone inicia seu livro com o questionamento que ela pretende responder ao longo de sua construção: O que é mulher?
Em um primeiro momento, a pergunta é respondida através da biologia. A mulher é portadora de um útero, que dá ao seu organismo função de reprodução da espécie e que diferentemente dos homens não têm os testículos. Portanto, somos de fato fisiologicamente diferentes dos homens, não há questionamento quanto a isso, porém quando se remonta à história da humanidade vemos que essa diferença não é suficiente para diferenciar os papéis sociais por trás. É neste ponto que toca Simone (BEAUVOIR, 1949).

Na filosofia clássica, Aristóteles define mulher “a fêmea é fêmea, em virtude da carência de qualidades”. Assim, para a autora, o homem vê uma relação direta do corpo com a natureza, como uma objetividade, porém, para eles, a mulher tem uma relação de subjetividade do corpo, de prisão e obstáculo, onde a sexualidade está presente e faz-se muito mais decisiva do que ao homem. E é dessa relação com o corpo que a mulher se torna submissa ao homem desde os primórdios sociais (BEAUVOIR, 1949).

A dualidade presente no posicionamento social do homem e da mulher, do inferior e do superior, caracteriza a relação dos seres humanos uns com os outros e consigo mesmos. Neste sentido, surge uma importante tese de Simone, o Sujeito e o Outro, na qual os homens são o sujeito da história e da sociedade e as mulheres são o outro, alheias ao desenvolvimento histórico (BEAUVOIR, 1949).

Esse conceito permeia a relação de inferioridade da mulher. Segundo Hegel, a hostilidade nas relações é fundamental e consciente, de forma que “o sujeito só se põe em se opondo: ele pretende afirmar-se como essencial e fazer do outro o inessencial, o objetivo”. Portanto, não apenas nas relações entre os sexos diferentes, mas também entre o mesmo sexo, há uma austeridade no posicionamento quanto a quem narra a história (BEAUVOIR, 1949).

Contudo, vemos que ao longo da história, outras minorias, como os negros e os judeus, apresentados por Simone, se opuseram quanto à inferioridade a eles estabelecida. Se antes na história tivemos rebeliões de negros por uma igualdade, dos judeus (muito importante lembrar que quando Simone escreve esse livro, os judeus são perseguidos por toda a Europa no holocausto alemão, e ainda antes disso, as diásporas judaicas mostram que esse povo já havia sido muito perseguido e expulso de suas terras), e mais contemporaneamente, a luta homossexual por igualdade, porque as mulheres sempre aceitaram sua posição submissa e, até o século XIX, pouco lutaram por uma ruptura desse papel? (BEAUVOIR, 1949).

Para Simone, todas as outras minorias buscaram se estabelecer como Sujeitos colocando o Outro em uma posição coadjuvante na sua história. Mas de fato, foi uma organização possível porque pode-se imaginar uma sociedade compostas apenas por eles. Porém as mulheres, diferentemente, não o podem fazer. O laço que as une com o seu opressor é muito mais profundo, intrínseco, que o laço que une o oprimido negro ao opressor branco. É justamente por esse motivo que nem a biologia pode explicar a inferioridade do sexo feminino. Não há como fazer nenhum recorte social que possa retirar um dos dois, não há como continuar a espécie humana sem que haja os dois sexos, não há uma, segundo Simone, “totalidade cujos os dois termos não sejam necessários um ao outro” (BEAUVOIR, 1949).

Assim, como explicarmos a forma como as mulheres foram colocadas como inferiores aos homens se existe de fato uma relação de igualdade e de necessidade em ambos para a constituição social. A autora explica que para os homens é claro que a diferenciação os mantém em uma posição de privilégio, onde estes têm controle social e da história, os definindo as “regras do jogo”, e sabemos que quando tratamos de privilégios, a dificuldade a abrir mão dos mesmos é sempre mais difícil e mais profunda (BEAUVOIR, 1949).

Contudo, para Simone, a mulher ainda não tomou consciência que seu papel na sociedade é tão importante quanto o dos homens, mas para além disso, já tomou consciência do risco assumido com a ruptura desse sistema, em que aponta a autora ser o risco econômico, de uma dependência financeira quanto à sua liberdade. Assim, as mulheres ainda não detêm os meios concretos e necessários para romper com o laço que as prende (BEAUVOIR, 1949).

Apesar disso, as mulheres vêm buscando uma nova definição do seu papel na sociedade. A batalha se dá primeiramente no âmbito profissional, onde por muitas vezes os homens caracterizam a inferioridade da mulher em realizar os mesmos trabalhos, por uma questão de natureza. Assim, quando uma mulher exerce o mesmo papel de um homem, estes afirmam que são iguais; porém, aponta Simone, que eles, ao realizarem tal afirmação, tiram o direito de reivindicação social e ao mesmo tempo alegam que somos diferentes, portanto, nunca seremos iguais e para isso não há nada que reivindicar quanto à igualdade (BEAUVOIR, 1949). Ou seja, no momento em que os homens assumem para si afirmarem uma igualdade, estes tiram da mulher o poder de contestar seu papel social da forma como lhes convém e reafirmam sua inferioridade (BEAUVOIR, 1949).

Nesse sentido, o tema é fundo para questões muito mais complexas e obscuras da sociedade. Vemos que, de fato, as mulheres exercem uma função social tão submissa que chegam a ser coisificadas. A transferência da propriedade “mulher” do pai para o marido se deu por todos os séculos até o século XX. Não havia que ser o poder de escolha da mulher de com quem construiria um “lar”, tal poder nunca lhe foi dado para sequer dizermos que foi tirado.

Assim, a violência de gênero, ou seja, meramente pelo fato de ser mulher, pressuposto de pertencer à, era considerado um crime. O sistema patriarcal, as legislações feitas e executadas por homens, não consideravam a mulher como ser passível de defesa, apenas de punição. Exemplo disso é o caso brasileiro da lei do adultério, que até 2005 vigorava no Brasil. Nesta o homem poderia denunciar legalmente sua esposa por adultério, sendo este passível de assassinar a mulher, e o contrário não era válido (GELEDÉS, 2013).

É por meio dessa disposição social que se explica os índices de mortes de mulheres no mundo. Sua submissão vai muito além da questão de propriedade do corpo da mulher, ultrapassa as barreiras do humanismo permitindo ao homem acreditar que é justificável a violência, uma vez que, como vimos com Simone, o papel social feminino nunca foi questionado por elas, e consequentemente, por eles o privilégio se mantém, e se manterá. Dessa maneira, veremos os dados relativos à América Latina quanto ao feminicídio, e subsequentemente, analisaremos o caso argentino, que se mostrou, recentemente, com um forte embate à questão da morte de mulheres por sua função social.

O feminicídio na América Latina

Antes de tratarmos os fatos, trataremos os conceitos. A definição de feminicídio segundo o livro “Diretrizes Nacionais do Feminicídio” do Brasil, “Femicídio” ou “feminicídio” são expressões utilizadas para denominar as mortes violentas de mulheres em razão de gênero, ou seja, que tenham sido motivadas por sua “condição” de mulher” (DIRETRIZES NACIONAIS DO FEMINICÍDIO, 2016).

O termo foi pela primeira vez utilizado em 1970 por uma autora anglo-saxã, Diana Russel, que sentiu a necessidade de não neutralizar os crimes de homicídio à mulher quando estes fossem por gênero, onde o único motivo de sua ocorrência é o fato da mulher ser mulher. Diferentemente dos crimes passionais, que normalmente são motivados por razões de foro íntimo ou por distúrbios psicológicos do agressor, os crimes da categoria de feminicídio não apresentam outra explicação além da desigualdade social entre os sexos, onde o homem se sente em poder de propriedade em relação à mulher (DIRETRIZES NACIONAIS DO FEMINICÍDIO, 2016).

É importante ressaltar duas características dos crimes de feminicídio. A primeira é que a morte das vítimas é evitável, ou seja, a violência contra a vítima e a intencionalidade são escolhidas pelo autor do crime e normalmente a vítima não tem como escapar. A segunda característica é que se trata de um fenômeno social e cultural e, dessa forma, não estamos tratando de casos isolados, mas que estão inseridos na sociedade patriarcal que define o “lugar” da mulher no seu meio (DIRETRIZES NACIONAIS DO FEMINICÍDIO, 2016).

Os crimes contra a mulher acontecem desde que a sociedade se define por sociedade, como vimos anteriormente com a teoria de Simone de Beauvoir, o simples papel social da mulher a coloca em uma posição de inferior e submissa ao homem. Neste sentido, quando o Estado passa a assumir um compromisso com a responsabilidade desses crimes?

A corrente política e do direito ganha força com a antropóloga Marcela Lagarde, que argumenta a importância da discussão sobre os feminicídios por parte do Estado e da responsabilidade que este deve ter quando à investigação e à punição dos autores de tais crimes. O debate abordado por Lagarde vai muito além, a ativista teve importante participação na construção de leis onde a mulher tivesse maior proteção, como a promulgação da lei do Feminicídio no Código Penal Federal e da Lei Geral de Acesso das Mulheres a Uma Vida Livre de Violência (2007), vigentes no México e que são exemplo para outros países da América Latina como o Brasil na promoção de leis que abarcam e diferenciam os crimes de gênero (PERIODISMO HUMANO, 2012).

Apesar dos avanços quanto às punições e reconhecimento dos crimes de gênero, como por exemplo a OMS (Organização Mundial da Saúde) que reconhece o feminicídio como “um problema de saúde pública mundial de proporções epidêmicas”, a região da América Latina ainda apresenta um dos maiores índices de feminicídio e crimes com a mulher (OMS, 2013).

O principal problema enfrentado pela região é a falta de informação sobre os casos, que acabam por inviabilizar a implementação de políticas mais eficientes, bem como um monitoramento, assistência e uma legislação que garante a especificidade do tema e do caso. Alguns estudos mais recentes, apontam como a região tem dados absurdamente altos com relação ao número de morte de mulheres (MARCATO, 2015).

Exemplificando essa falta de dados, em 2009, a Cepal (Comissão Econômica para América Latina e Caribe) promoveu uma pesquisa apontando os casos de homicídios contra mulheres na região, que indicou a deficiência das informações, mas posicionou com informações da própria organização que foram 117 casos no Peru, 72 casos na República Dominicana, 52 casos no Chile, 27 casos no Paraguai, 20 casos no Uruguai e em El Salvador e 14 casos na Costa Rica (CEPAL, 2009).

A importância quanto ao reconhecimento do problema em organismos mundiais aponta um avanço nos processos institucionais do crime. O trecho a seguir foi extraído do Informativo Anual de 2011 da Cepal sobre a igualdade de gênero: “a adoção da Convenção de Belém do Pará em 1994 consolida, no plano jurídico, o processo de reconhecimento da violência contra a mulher como um problema público (CEPAL, 2009). Pode-se afirmar que o reconhecimento da violência no espaço doméstico/privado tem ocorrido muito mais rapidamente que no espaço público, como no caso dos delitos sexuais” (CEPAL, 2011).

O segundo estudo, base de dados maior que o anterior, foi um estudo realizado pela organização Small Arms Survey, organização que tem como foco as violências armadas, no período de 2004-2009 e que apontava El Salvador como o país com maior número de casos de feminicídio. Os seguintes países nas listas, eram: Jamaica, Guatemala, Guiana, Honduras, Antilhas, Colômbia, Bolívia, Bahamas, Venezuela, Belize, Brasil, Equador e República Dominicana. Esse mesmo estudo apontou que o maior índice de uso de armas de fogo em feminicídios foi no México, cerca de 80% dos crimes. Já nos países como Brasil, Colômbia, Guatemala e Honduras, o índice de uso de armas de fogo nos crimes é cerca de 60% (SAS, 2012).

É claro a partir desses dados o quão importante é o diálogo sobre o feminicídio, principalmente na América Latina. As definições de feminicídio, as leis já promulgadas, os debates presentes em torno do tema e principalmente a transparência dos Estados quanto ao tema são grandes avanços para a luta contra os crimes de gênero. Porém, a falta de informação não esconde a gravidade do problema em uma região onde a violência é cotidiano, e por isso se faz ainda mais necessária. Tal deficiência dificulta projetos como o “Livro de Diretrizes Nacional do Feminicídio”, onde dados sobre tais crimes são apresentado e permitem as legislações acompanharem o problema e buscarem soluções para os mesmos. Além disso, a necessidade que se tem de produzir conhecimento sobre o assunto, tanto quanto o monitoramento dos dados e dos indicativos de cada país da região.

Os dados apresentados nos permitem ter um panorama da situação na América Latina, porém vemos que pouco se fala da Argentina quando apontamos os dados dos países com maiores índices. Contudo, o debate do tema no país não é recente, mas também não é pioneiro. Uma sociedade que apresenta graves problemas criminais e econômicos, bem como uma sociedade patriarcal, estruturada no machismo assim como os demais países da região. Os números argentinos são muitos altos para o tamanho do país e os recentes casos de brutalidade no feminicídio parou, em 2016, boa parte da sua sociedade. Os impactos gerados são positivos e ainda muito sentidos, mas mesmo com uma legislação e uma luta social, os números de mortes continuam crescendo, assim como nos demais países da região.

O caso argentino

Não diferente das demais sociedades da América Latina, a Argentina convive com o feminicídio desde as suas construções como sociedade no período colonial. Contudo, recentemente o tema tem ganhado forças e visibilidade no país por três assassinatos que aconteceram nos últimos anos e que devido sua brutalidade, trouxeram à tona a necessidade de se falar mais sobre a proteção da mulher.

Assim como em muitos países da região, a dificuldade gerada por falta de dados oficiais sobre o número de mortes no país, prejudica um maior diálogo com a sociedade, bem como uma legislação mais específica e enraizada a fim de proteger a mulher. Por esse fator, a Argentina hoje, apresenta diferentes organizações, como a Casa del Encuentro, e mais recentemente a plataforma Ni una Menos, que buscam monitorar os dados do país, além de promover uma pressão no governo em favor de novas políticas (CARTA CAPITAL, 2015).

Nesse sentido, desde 2008 a organização Casa del Encuentro, registra uma base de dados, muito mais completa que a do governo, com as estatísticas do país e um monitoramento de todos os casos julgados na justiça. Tal tarefa é realizado por meio de 120 meios de comunicação da Argentina, e além disso são catalogadas informações recebidas de algumas autoridades policiais ou jurídicas sensibilizadas com a questão (CASA DEL ENCUENTRO, 2017).

Segundo a organização, no período entre os meses de janeiro e outubro de 2016, foram registrados 230 casos de homicídios de mulheres, que pode ser traduzido como 1 assassinato a cada 30 horas. Já no ano de 2015, foram registrados 140 casos. Em 2014 foram registrados 277 casos, e em 2013, 295 casos. Apesar de serem dados não oficiais, a sociedade muito se pauta nessas informações (CASA DEL ENCUENTRO, 2017).

A organização ainda analisou dados referentes aos tipos de assassinatos, possibilitando uma ampla visão da questão. Notou-se que o feminicídio ocorre em todas as classes sociais e em todas as faixas etárias. Em 9 de cada 10 casos, o agressor era parceiro ou ex-parceiro da vítima. Além disso, também foi constatado que houve um aumento dos crimes contra mulheres e meninas grávidas (CASA DEL ENCUENTRO, 2017).

Apesar da falta de estatísticas oficiais, que tentam ser supridas pelas organizações não governamentais da região, o país, segundo dados da ONU, é o que apresenta uma das legislações mais completas da região da América Latina. Já em 1994, o país sancionou uma lei contra a violência intrafamiliar, e seguindo os passos desta, em 2009, foi sancionada outra lei que pretendia proteger integralmente, além de prevenir e erradicar a violência diretamente contra a mulher. Já em 2012, o país promulgou uma lei que pune com reclusão ou prisão perpétua os casos de feminicídio, incluindo esse conceito à legislação. Contudo, ainda não houve uma regulamentação efetiva para proteção da mulher por meio dessas leis (ONU; CEPAL, 2012).

Com todo esse aparato legislativo, os números argentinos chocam pelo tamanho do país. Vimos, anteriormente, que a Argentina não está entre os maiores índices de feminicídio da região e que assim como o México, conta com uma opinião pública e com organizações não governamentais muito bem articuladas. Assim, é possível compreender como, em 2016, três casos de feminicídio repercutiram em protestos e marchas femininas por todo o país. O país encontra-se em um paradoxo onde a visibilidade da questão de homicídios por gênero nunca foi tão grande, mas ao mesmo tempo, os números não param de crescer.

Grandes mobilizações atraíram os olhares do mundo todo para a Argentina em outubro de 2016. Milhares de mulheres foram às ruas de preto, com palavras de ordem, com o intuito de mostrarem ao mundo e principalmente à sociedade argentina que o machismo mata. E que neste país, tem matado com muita crueldade. Porém, passados esses acontecimentos, que prenderam os olhos da sociedade, quais teriam sido os impactos de fato nas legislações do país, a fim de garantir que casos como os de Lucía, 16 anos, e Chiara, 14 anos, não ocorressem mais?

Os reflexos dessas manifestações ainda estão em processo de acontecimento. É fato que o governo argentino, bem como o Congresso, já mostrara intenções de uma mudança, tanto nas legislações, aprovando uma reforma para que haja uma paridade no Parlamento, quanto nos discursos promovidos pelo atual presidente, Mauricio Macri (EL PAÍS, 2016).

Já os movimentos não governamentais, ganharam ainda mais força na promoção de um diálogo amplo e social e, também, nas exigências que procuram cobrar dos governantes. Assim, a plataforma Ni una menos, principal organização do movimento contra o feminicídio no país, juntamente à La Casa del Encuentro, elencou cinco pontos importantes que precisam ser garantidos legalmente para que se possa buscar uma nova realidade de igualdade de gêneros (NI UNA MENOS, 2017).

Podemos destacar o principal enfoque de cada um dos pontos: a implementação de recursos para garantir a lei 26.485 já em vigor no país; garantir que as vítimas possam ir na justiça; elaborar um Registro Único das vítimas de agressão contra as mulheres; garantir e aprofundar a Educação Sexual Integrada em todos os níveis educativos, com a finalidade de promover a igualdade de gêneros; garantir a proteção de todas as vítimas de violência contra a mulher (NI UNA MENOS, 2017).

Além dos aspectos legislativos que são a principal pauta da plataforma, também é importante destacar o impacto social que o movimento tem gerado na sociedade argentina. A mídia e a opinião pública têm promovido maiores debates sobre o tema por meio de redes sociais. Sabe-se que as redes sociais são importantes ferramentas no diálogo social, e na promoção de informação, dessa forma, com 280.598 seguidores no Facebook, o movimento Ni una menos procura atingir, não apenas na Argentina, mas na região da América Latina, o maior número de mulheres, levando informações sobre os seus direitos já em vigor e sobre as conquistas que o movimento tem realizado junto ao governo argentino. É possível encontrar na página telefones de contato onde a vítima pode buscar ajuda tanto junto ao governo quanto das entidades sociais que prestam auxílio (FACEBOOK, 2017).

Para concluir, é possível analisar, por meio dos dados apresentados, o quanto a sociedade constituída no sistema patriarcal é violenta e perigosa para a mulher. Vimos com Simone de Beauvoir que se de fato somos biologicamente diferentes dos homens, somos, também, tão necessárias quanto eles para o desenvolvimento e continuação da sociedade humana como conhecemos. Não há uma explicação clara do porque ao longo de toda história humana a mulher não apenas foi, mas aceitou, ser submissa ao homem.

Diferentemente de outras minorias, como os negros, as mulheres nunca se uniram de forma a confrontar o sistema na qual estão imersas. Muito por parte, acredita Simone, pela dependência financeira que ainda tem em relação aos homens e que não as permite romper com o laço que as une ao seu opressor. Tal laço, é inclusive, muito mais profundo que de quaisquer outras minorias. Não existe sociedade que possa ser composta apenas por homens ou por mulheres, somos dependentes uns do outro. Justamente por esse fator, nos questionamos de onde veio essa inferiorização.

Se não fosse suficientemente ruim o fato de sermos inferiorizadas, tal submissão chega ao ponto em que há uma objetificação do corpo da mulher e de sua vida. Vemos que nesse ponto, a ideia de superioridade é tão forte que lhe permite, meramente pelo fato de ser homem, tirar a vida de uma mulher. É nessa situação que encontramos a definição de feminicídio, a qual vem nos últimos 50 anos ganhando espaço no debate da igualdade de gêneros. Tal debate concretiza uma conquista feminina na garantia dos direitos à vida e à igualdade.

Como vemos, as estatísticas de feminicídio na América Latina ainda são alarmantes. O grande número de casos, a frequência com que ocorrem e a falta de informações, prejudicam os avanços da consolidação de legislações mais específicas e abrangentes, que possam garantir uma queda nos incidentes e uma maior proteção às mulheres da região.

O caso argentino chama a atenção pelos números de feminicídios altos, mesmo que não estejam dentre os mais altos da região. Mas acima disso, por ser um país onde as leis de defesa contra a violência doméstica da mulher aumentaram conforme o debate sobre o tema foi ganhando novos espaços. Contudo, paradoxalmente a esse avanço, os casos continuam crescendo. Ao estudar um pouco mais os impactos dos recentes movimentos, vemos como é de suma importância o diálogo aberto com a sociedade e a divulgação dos dados, ainda que escassos. A conscientização sobre o problema e encorajamento das mulheres em denunciar os casos de violência são primordiais para um combate direto do problema.

Para isso, é importante que a produção de conhecimento sobre o assunto continue e aumente cada vez mais, que os governos tomem consciência da necessidade de um aparato legislativo que proteja a mulher e garanta uma punição ao agressor. Acima de tudo, que a sociedade se conscientize da igualdade de gênero, por meio do diálogo e debate promovido por espaços específicos que vão dos meios educacionais, em todos os níveis socioeconômicos e etários, e assim cheguem até os domicílios, onde geralmente acontecem os crimes.